Transitado em Julgado: O que Lula e Precatórios têm em comum?

Atualizado em 10 de junho de 2020 por washington

O Julgamento do ex-Presidente Lula gerou grande interesse em toda a população brasileira e mesmo repercussão no exterior, mas, apesar da grande quantidade de notícias sobre a evolução do processo, os detalhes jurídicos são de difícil compreensão para muitos. Assim, vamos tentar descomplicar alguns dos principais aspectos relacionados ao tema, apresentar algumas definições fundamentais e demonstrar como essas polêmicas podem ser relacionadas ao universo dos precatórios, sem, contudo, adentrar em discussões acerca do mérito das decisões.

As fases do processo

No Brasil, a Constituição Federal, em seu capítulo III, estabeleceu a organização do Poder Judiciário, inclusive relacionando os órgãos que o compõem. É necessário perceber que esses órgãos ficaram organizados de acordo com as áreas em que atuam, sendo distribuídos entre a Justiça Estadual, Justiça Federal, a Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar (chegaremos ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal em seguida).

Embora existam exceções, em geral, a lei brasileira adota o chamado Princípio do Duplo Grau de Jurisdição ou Princípio da Recursividade em todas as áreas. Esse princípio leva em consideração a possibilidade de falhas por parte do juiz, da não aceitação da decisão pela parte vencida e de eventuais arbitrariedades.

Assim, ficaram estabelecidas duas instâncias. Em regra, a 1ª Instância representa a porta de entrada ao Poder Judiciário, onde é geralmente iniciado o processo, que é analisado monocraticamente, ou seja, por um único magistrado. Uma vez encerrado o processo em 1ª Instância, a parte vencida tem a opção de recorrer a um órgão colegiado, que representa a 2ª Instância. Composta por mais de um indivíduo, esta é responsável por revisar a decisão questionada, conferindo maior confiabilidade e legitimidade ao processo.

Resta então a dúvida sobre a atuação do STJ e do STF. Se a regra geral é que os processos judiciais se encerram após a decisão de 2ª Instância, seria possível acionar o STJ ou o STF nos casos em que ocorra a violação ou a aplicação incorreta de Lei Federal ou de preceito constitucional, respectivamente.

O trânsito em julgado e os processos de execução

Cabe agora fazer uma distinção entre os processos de mérito ou conhecimento e os processos de execução. A análise feita acima diz respeito à discussão do mérito da questão jurídica, quando serão avaliados os argumentos de cada parte e proferida a decisão. Após esgotadas todas as oportunidades de recurso, seja após a 2ª Instância, seja com o acionamento do STJ ou do STF, dizemos que ocorreu o trânsito em julgado da decisão.

Por sua vez, os processos de execução possuem como finalidade garantir a satisfação de um direito certo. Pressupõem o inadimplemento de uma obrigação, que pode ter sido afirmada judicial ou extrajudicialmente, cuja satisfação se busca garantir.

Execução após 2ª instância

Agora que entendemos em linhas gerais as fases processuais e o que significa uma sentença transitada em julgado, é possível perceber a polêmica em torno da possibilidade de prisão após a 2ª Instância.

A Constituição Federal consagrou a Presunção da Inocência como um de seus princípios basilares, estipulando que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Como vimos, o trânsito em julgado só ocorre após esgotadas todas as fases recursais, incluindo eventuais recursos ao STJ ou STF.

Dessa forma, a prática brasileira era de que, excluídas eventuais prisões cautelares, o acusado teria direito a aguardar em liberdade até o trânsito em julgado de sua sentença. Essa prática passou a ser alvo de intensos debates depois de o STF emitir decisões em que permitia a prisão após a 2ª Instância.

Em 2016, afirmou o Supremo Tribunal que:

“execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal” (ARE 964.246/SP – RG, Pleno, rel. Min. Teori Zavascki).

Por um lado, o argumento em defesa da prisão após a 2ª Instância seria de que os recursos analisados pelo STJ e pelo STF sofreriam apenas um controle de legalidade ou constitucionalidade. As decisões não seriam mais analisadas em seu mérito. Por outro lado, muitos juristas defendem que a Constituição Federal seria clara em determinar que a prisão só pode ocorrer após o trânsito em julgado, com a prisão após a 2ª Instância contrariando o dispositivo constitucional.

A questão não é consensual mesmo no STF, que já emitiu decisões nos dois sentidos, sob a justificativa de que a Constituição não seria suficientemente clara na distinção entre culpabilidade e cumprimento de pena, mas tem adotado entendimento no sentido de permitir a prisão antes do trânsito em julgado. O debate ganhou ainda maior repercussão em meio à condenação do ex-Presidente da República em 2ª Instância, perante o TRF-4.

O Habeas Corpus de Lula

Um Habeas Corpus é um remédio constitucional destinado a garantir a liberdade de locomoção de um indivíduo, quando esta estiver ameaçada por ilegalidade ou abuso de poder. Um Habeas Corpus pode ser repressivo, após ocorrer a violência ou coação à liberdade de locomoção, ou preventivo (modalidade acionada pelo ex-Presidente), quando houver ameaça a este direito.

habeas corpus

Tendo por base a polêmica exposta, a defesa de Lula, então, ajuizou um Habeas Corpus Preventivo, buscando garantir que sua prisão só ocorresse após o trânsito em julgado, o que foi rejeitado pelo colegiado.

Assim, a rejeição ao Habeas Corpus impetrado pelo ex-Presidente reafirmou o entendimento atual do STF em permitir a prisão após a 2ª Instância, mas não encerrou a polêmica, que ainda será revista pelo STF em pelo menos duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade que versam sobre o tema.

A polêmica e os precatórios

Mas o que toda esta discussão tem a ver com os precatórios e o que estes têm em comum com Lula?

Na verdade, dois aspectos devem ser ressaltados que possuem muita relação com o debate acima. Em primeiro lugar, o artigo 496 do Novo Código Civil prevê a obrigação de sentenças proferidas contra a União, os Estados, os Municípios, as autarquias ou as fundações de direito público serem submetidas ao duplo grau de jurisdição, não gerando efeitos até sua confirmação. Ou seja, o NCPC prevê a obrigatoriedade da imposição de recursos pelo Governo, de forma que os precatórios deverão chegar, em regra, à 2ª Instância. É a chamada remessa ou reexame necessário.

Vale ressaltar que algumas exceções foram feitas à regra geral, estando dispostas nos parágrafos 3º e 4º do mesmo dispositivo legal. Exemplos das referidas exceções incluem sentenças fundadas em súmulas de tribunais superiores ou condenações a valores inferiores aos previstos em lei (que podem variar desde 1.000 salários-mínimos, para a União e respectivas Autarquias e Fundações; 500 salários-mínimos para Estados e capitais de Estados; até 100 salários-mínimos, para os demais municípios, por exemplo).

Ademais, diferentemente dos processos civis, os precatórios não chegam ao STJ ou ao STF, exceto por iniciativa da parte adversária ao Ente Público. Dessa forma, as sentenças podem ter seu trânsito em julgado após a 2ª Instância, quando podem ser executados.

Percebemos, então, que, assim como ocorreu com a sentença contra o ex-Presidente, os precatórios têm sua execução após a 2ª Instância, mas por motivos diferentes. Por um lado, Lula teve a oportunidade de acessar o STJ e o STF e teve o início de sua execução ocorrido antes do trânsito em julgado de sua sentença. Sua execução ocorreu após a 2ª Instância por entendimento jurisprudencial, portanto.

Por outro lado, os precatórios têm sua execução ocorrida também após a 2ª Instância, mas em decorrência de uma sentença transitada em julgado, não tendo a oportunidade de acessar o STJ ou o STF, exceto por iniciativa do particular.

Conclusão

Mais do que discutir se a sentença contra o ex-Presidente da República foi correta ou não, buscamos analisar os conceitos pertinentes ao caso e explicar a polêmica jurídica em torno da prisão após a 2ª Instância, o que vale para qualquer caso similar. Ademais, tentamos demonstrar a relação do caso com o sistema de precatórios e o motivo de não haver polêmicas sobre a execução destes após a 2ª Instância.

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